A Onisciência de Jesus Antes da Ressurreição: Uma Análise Cristológica
Introdução: O Paradoxo da Onisciência de Jesus Encarnado
A questão sobre a onisciência de Jesus antes de Sua ressurreição constitui um dos debates mais complexos e fascinantes da cristologia, sendo fundamental para a compreensão da pessoa de Cristo. Ela toca no cerne da natureza do Filho de Deus encarnado.
Baseando-se em passagens como Lucas 2:52, Filipenses 2:7-11 e Mateus 24:36-39, levanta um paradoxo aparente: como Jesus pode ser plenamente Deus e, portanto, onisciente, e, ao mesmo tempo, experimentar limitações em Seu conhecimento como homem?
Este dilema tem sido objeto de intensa reflexão teológica ao longo dos séculos. Este relatório buscará desvendar essa complexidade, explorando as nuances teológicas e as diversas interpretações que a tradição cristã oferece para conciliar a divindade e a humanidade de Jesus em relação ao Seu conhecimento durante Sua vida terrena.
A questão apresentada não se configura como uma mera contradição lógica a ser resolvida por uma resposta dicotômica. Pelo contrário, ela aponta para um paradoxo teológico fundamental, inerente à própria doutrina da Encarnação.
Se a divindade assume plenamente a humanidade, ela deve, por sua natureza, incorporar as limitações inerentes à condição humana, incluindo as cognitivas. Contudo, a essência divina permanece inalterada, mantendo Sua onisciência intrínseca.
A tensão resultante não é uma falha, mas uma característica definidora da união das duas naturezas em Cristo. A compreensão desse mistério exige a exploração de estruturas teológicas que permitam a coexistência de ambas as verdades, articulando como Jesus poderia ser simultaneamente plenamente Deus e plenamente homem sem comprometer a integridade de Suas naturezas.
A doutrina cristã ortodoxa afirma que Jesus é “verdadeiro Deus e verdadeiro homem”. A onisciência, definida como o conhecimento completo e ilimitado, abrangendo todos os eventos passados, presentes e futuros, é um atributo inerente à divindade.
No entanto, as Escrituras apresentam evidências que sugerem um conhecimento limitado em Sua natureza humana, criando uma tensão aparente com a onisciência divina. Este aparente conflito é o cerne da discussão.
Análise Bíblica dos Fundamentos da Discussão
Para uma análise aprofundada da onisciência de Jesus antes da ressurreição, é imperativo examinar as passagens bíblicas que fundamentam tanto a percepção de um conhecimento limitado quanto a de um conhecimento sobrenatural.
A tabela a seguir organiza visualmente os principais “pontos de dados” bíblicos que formam a base desta discussão, permitindo uma compreensão imediata do dilema central e servindo como ponto de referência para a análise subsequente.
Passagem Bíblica | Conteúdo Principal | Implicação Aparente para o Conhecimento de Jesus |
Lucas 2:52 | “E crescia Jesus em sabedoria, e em estatura, e em graça para com Deus e os homens.” | Sugere um desenvolvimento progressivo do conhecimento humano de Jesus, indicando que ele não era onisciente desde o nascimento. |
Filipenses 2:7-11 | Jesus “esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, tornando-se semelhante aos homens.” | Implica uma autolimitação ou renúncia de privilégios divinos, o que pode incluir o não-exercício pleno da onisciência. |
Mateus 24:36-39 | “Quanto a esse dia e hora, ninguém sabe, nem os anjos no céu, nem o Filho, senão o Pai.” | Declaração explícita de Jesus sobre seu desconhecimento de um evento futuro, o que aponta para uma limitação real em seu conhecimento. |
João 1:47-48, 4:18, 11:11-15 | Jesus conhecia Natanael antes de Filipe o chamar; revelou o passado da mulher samaritana; sabia da morte de Lázaro antes de ser informado. | Demonstrações de conhecimento sobrenatural que parecem indicar onisciência. |
Lucas 6:8, 9:47, Mateus 9:4 | Jesus conhecia os pensamentos de seus amigos e inimigos. | Evidências de conhecimento além da capacidade humana normal, sugerindo onisciência. |
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Lucas 2:52: O Crescimento em Sabedoria de Jesus
O versículo Lucas 2:52 afirma que “E crescia Jesus em sabedoria, e em estatura, e em graça para com Deus e os homens”. Esta tríplice dimensão de crescimento — intelectual/espiritual, físico e relacional — aponta para um desenvolvimento humano integral e equilibrado.
A perspectiva teológica dominante entende isso como um crescimento humano genuíno, essencial para que Jesus se identificasse completamente com a humanidade. Ele não apenas cresceu fisicamente, mas também aprendeu a andar, falar, rir, trabalhar, ler e conviver com as pessoas, como qualquer criança.
Sua sabedoria, mesmo na infância, como demonstrado em Sua interação com os mestres da Lei no templo, impressionou a todos.
Se Jesus “crescia em sabedoria”, isso sugere que houve um período em que Seu conhecimento humano não era pleno ou ilimitado, mas sim progressivo. Este é um forte indício de que, em Sua natureza humana, Jesus não era onisciente desde o nascimento, mas adquiriu conhecimento ao longo do tempo.
Este crescimento não nega Sua divindade, mas reafirma a autenticidade de Sua humanidade, que foi assumida por completo, incluindo Suas limitações físicas e psicológicas. A doutrina da encarnação pressupõe que Jesus, o Deus encarnado, tornou-se passível das mesmas limitações comuns a todos os homens.
Este versículo é crucial para a posição que argumenta contra a onisciência inata de Jesus antes da ressurreição.
O desenvolvimento de Jesus em sabedoria, estatura e graça não constitui um mero detalhe biográfico, mas uma afirmação teológica profunda. Se a humanidade de Jesus fosse apenas uma aparência, Seu crescimento seria uma mera simulação.
O registro de que Ele “crescia em sabedoria” indica que Sua mente humana adquiriu conhecimento e compreensão de forma progressiva, tal como a de qualquer ser humano.
Esta autenticidade do desenvolvimento humano é crucial para a missão redentora de Cristo, pois permitiu que Ele se identificasse plenamente com a condição humana e experimentasse a vida em Sua totalidade, “exceto no pecado”.
Isso demonstra que Sua humanidade não era uma mera “casca”, mas uma realidade integral e genuína.
Tal processo implica uma autolimitação ou um velamento da onisciência divina na consciência humana de Jesus, possibilitando uma experiência humana autêntica e tornando Sua obediência e empatia plenamente compreensíveis.
Seu crescimento humano, portanto, não foi uma deficiência ou uma suspensão temporária de Sua divindade, mas uma expressão de Sua condescendência amorosa, essencial para o plano divino de redenção.
Filipenses 2:7-11: A Doutrina da Kenosis (Esvaziamento)
O hino cristológico de Filipenses 2:6-7 afirma que Jesus “Ele tinha a natureza de Deus, mas não tentou ficar igual a Deus. Pelo contrário, ele abriu mão de tudo o que era seu e tomou a natureza de servo, tornando-se assim igual aos seres humanos. E, vivendo a vida comum de um ser humano”.
A palavra grega kenóō (esvaziou) é central para este conceito. A maioria das teologias cristãs rejeita a ideia de que Jesus se “esvaziou” de Seus atributos divinos essenciais (como onisciência, onipotência, onipresença).
Isso implicaria que Ele deixou de ser plenamente Deus, o que é considerado herético, pois Deus, por definição, não pode deixar de ser Deus. Colossenses 2:9, por exemplo, afirma que “nele habita, corporalmente, toda a plenitude da Divindade”.
Em vez disso, “esvaziou-se” é interpretado como uma renúncia voluntária de Seus privilégios, glória, ou do exercício pleno de Seus atributos divinos em Sua forma humana.
Ele “velou” Sua glória celestial e escolheu ocupar a posição de servo. É frequentemente descrito como um “esvaziamento por adição” – a adição da natureza humana e suas limitações – em vez de uma subtração de Sua divindade.
A doutrina da Kenosis, particularmente em sua interpretação majoritária de um não-exercício voluntário ou velamento dos atributos divinos , emerge como o mecanismo teológico fundamental que permite conciliar a onisciência divina inerente de Jesus com Suas aparentes limitações humanas.
Esta doutrina elucida como Jesus pôde ser plenamente Deus e, ainda assim, genuinamente crescer em sabedoria, conforme Lucas 2:52 , ou declarar desconhecer o dia e a hora, como em Mateus 24:36. A Kenosis, neste contexto, não representa uma perda de Seus atributos divinos, mas uma escolha funcional.
Consequentemente, a pessoa de Jesus era ontologicamente onisciente, ou seja, em Sua essência mais profunda como Deus, possuía todo o conhecimento, mas optou por operar dentro das restrições de Sua natureza humana, permitindo que Sua mente humana aprendesse e experimentasse limitações de forma autêntica.
Essa escolha não se configura como uma deficiência de Sua divindade, mas como um ato de profunda humildade, amor e obediência ao plano redentor do Pai, sendo essencial para Sua identificação com a humanidade e para a consecução de Sua obra salvífica.
Existem diferentes abordagens da Kenosis e suas implicações para a onisciência:
- Kenosis Moderada (Visão Consensual): Esta perspectiva defende que Jesus manteve todos os atributos divinos, mas voluntariamente os submeteu à vontade do Pai, não fazendo uso deles a não ser quando era a vontade de Deus. Isso permite que Ele demonstre conhecimento divino e, ao mesmo tempo, experimente limitações humanas , como o crescimento em sabedoria ou o desconhecimento do dia e da hora.
- Teologias Kenóticas Radicais (Século XIX): Algumas teorias mais radicais, como as de Gottfried Thomasius, August Frank e Wilhelm Gess, propuseram que o Logos se despojou ou limitou realmente atributos divinos como onisciência, onipotência e onipresença, ou que Sua consciência divina se degradou em uma consciência finita. Essas visões, embora buscando explicar a autenticidade da humanidade, são geralmente consideradas problemáticas pela ortodoxia, pois comprometem a plena e inalterável divindade de Cristo.
- Kenosis como Amor Trinitário: A kenosis é entendida não apenas como um ato do Filho, mas como uma manifestação do amor de Deus que é intrínseco à própria Trindade. É um “esvaziamento de si sem perder a identidade” para se abrir ao outro. É um ato voluntário de auto-humilhação e obediência que culmina na cruz.
Mateus 24:36-39: “Nem o Filho sabe o dia nem a hora”
Jesus declara explicitamente: “Quanto a esse dia e hora, ninguém sabe, nem os anjos no céu, nem o Filho, senão o Pai”. Esta é a passagem mais direta e, para muitos, a mais desafiadora, que sugere uma limitação no conhecimento de Jesus antes da ressurreição, sendo um ponto crucial para a argumentação.
A expressão “nem o Filho” é encontrada em manuscritos antigos e é considerada autêntica, apesar de variações em outros , o que reforça a necessidade de uma interpretação cuidadosa.
Para além da simples afirmação de que Jesus se manifestou a partir de Sua natureza humana, o propósito teleológico dessa limitação específica – o desconhecimento da hora de Seu retorno – assume uma importância crucial.
Esta declaração de Cristo redireciona o foco da especulação cronológica para a responsabilidade ética e a vigilância espiritual dos discípulos. Ela serve a um fim pedagógico e soteriológico.
Se Jesus tivesse revelado a data exata, ou se Ele tivesse manifestado onisciência irrestrita em Sua humanidade, a experiência humana de fé, confiança e dependência do Pai, bem como a necessidade de vigilância constante, seria comprometida.
Assim, essa limitação não é um defeito ou uma falha na pessoa de Cristo, mas uma escolha deliberada e redentora que enfatiza a seriedade da preparação para Seu retorno e realça a perfeita obediência e dependência de Jesus em relação ao Pai, mesmo em Seu estado encarnado.
É um ato de amor que permite que a humanidade se relacione com Ele em Sua própria jornada de fé e obediência.
A questão de como essa limitação é conciliada com a divindade de Cristo é abordada por diversas interpretações:
- Perspectiva da Natureza Humana: A interpretação mais comum e amplamente aceita é que Jesus estava falando a partir de Sua natureza humana. Como homem, Ele experimentou limitações genuínas, incluindo as cognitivas, para que Sua encarnação fosse completa e autêntica.
- Submissão ao Pai: Essa declaração também pode ser vista como um ato de submissão à vontade e soberania do Pai, que detém o conhecimento exclusivo dessa data. Jesus, em Sua humanidade, viveu em total dependência do Pai.
- Ênfase na Preparação e Vigilância: Outra interpretação sugere que o foco principal da declaração não é a limitação de Jesus, mas a necessidade de os discípulos estarem sempre preparados e vigilantes, sem especular sobre datas que não lhes foram reveladas. A incerteza do tempo serve como um incentivo para a prontidão espiritual.
- Paradoxo Bíblico: Teólogos reconhecem que isso representa um “notável paradoxo” ou uma “incrível declaração”. Contudo, a maioria sustenta que essa limitação não nega Sua divindade, mas reafirma a autenticidade e a profundidade de Sua encarnação. O Evangelho de Mateus, por exemplo, apresenta tanto a divindade quanto a humanidade de Jesus, mostrando que a limitação de conhecimento não anula Sua natureza divina.
- Argumentos Contrários e Respostas: Alguns argumentam que, se Jesus não sabe tudo, Ele não pode ser Deus. A teoria das “duas naturezas” é a principal resposta ortodoxa para conciliar isso, embora alguns críticos a considerem logicamente contraditória. A resposta ortodoxa enfatiza que a onisciência pertence à natureza divina do Logos, enquanto a limitação se manifesta na consciência humana assumida.
Doutrinas Cristológicas Essenciais para a Compreensão

Para compreender a complexidade do conhecimento de Jesus, é fundamental recorrer a doutrinas cristológicas que foram desenvolvidas ao longo dos séculos para articular a relação entre Suas naturezas divina e humana.
A União Hipostática: Plenamente Deus e Plenamente Homem
A União Hipostática é a doutrina central que descreve como as naturezas divina e humana de Cristo estão unidas em uma só pessoa, a do Verbo de Deus.
Definida formalmente no Concílio de Calcedônia (451 d.C.), ela afirma que Cristo é “consubstancial ao Pai segundo a divindade, e consubstancial a nós segundo a humanidade”, existindo em duas naturezas “sem mistura, sem mudança, sem divisão, sem separação”.
A natureza humana foi assumida, não absorvida pela divindade. Isso significa que Jesus não era ora divino, ora humano, nem uma fusão que resultasse em uma terceira natureza, mas sempre Deus e homem simultaneamente em uma única pessoa. Não há duas pessoas em Cristo, mas apenas uma, sem dualidade de personalidade.
A União Hipostática é a doutrina fundamental que estabelece a base para compreender o conhecimento de Jesus. Ela postula a existência de uma única pessoa, o Logos, que subsiste em duas naturezas distintas: divina e humana.
A unidade dessa pessoa é de suma importância, pois significa que, mesmo quando a mente humana de Jesus experimentava limitações, como o crescimento em sabedoria ou o desconhecimento do dia e da hora , era a mesma pessoa do Logos que vivenciava essas limitações através de Sua humanidade.
A natureza divina, por Sua própria definição, permanece onisciente, enquanto a natureza humana, inerentemente, é finita e limitada. A unidade da pessoa de Cristo permite que o que é verdadeiro de qualquer uma das naturezas seja atribuído à pessoa de Cristo.
Consequentemente, a pessoa de Jesus é onisciente, por virtude de Sua natureza divina, e também experimentou limitações, por virtude de Sua natureza humana. O aparente desafio não reside em uma contradição lógica no ser de Cristo, mas na expressão de Seus atributos através de Sua humanidade assumida.
A onisciência não foi perdida, mas Sua manifestação plena foi voluntariamente restrita em Sua consciência humana para que a encarnação fosse autêntica.
A pessoa divina do Filho de Deus assumiu a natureza humana com todas as suas propriedades essenciais e enfermidades comuns, contudo sem pecado. Ele trabalhou com mãos humanas, pensou com inteligência humana, agiu com vontade humana e amou com coração humano.
Tudo o que Cristo fez e faz em Sua humanidade depende da única pessoa do Verbo, que comunica à Sua humanidade Seu próprio modo de existir pessoal na Santíssima Trindade.
O desafio, como apontado por alguns, é entender como um ser pode ser onisciente e ter conhecimento limitado ao mesmo tempo, sem que isso implique duas pessoas ou uma “esquizofrenia” na consciência de Cristo. A resposta reside na distinção entre as naturezas, mas na unidade da pessoa.
A Communicatio Idiomatum: A Comunicação de Propriedades
A Communicatio Idiomatum (comunicação de propriedades) é uma doutrina teológica intimamente relacionada à União Hipostática. Ela ensina que os atributos e ações de ambas as naturezas (divina e humana) podem ser legitimamente atribuídos à única pessoa de Jesus Cristo.
Não significa que as naturezas se misturam ou trocam atributos, mas que a pessoa de Cristo, sendo uma, é o sujeito de todas as propriedades e ações de Suas duas naturezas.
Isso permite que se diga que o homem Jesus podia reivindicar a glória que tinha com o Pai antes do mundo (João 17:5), que desceu do céu (João 3:13), e também a onipresença (Mateus 28:20).
Da mesma forma, pode-se dizer que “Deus morreu na cruz” ou que “o Senhor da glória foi crucificado”, referindo-se à pessoa de Cristo através de Sua natureza humana.
A Communicatio Idiomatum serve como uma ferramenta teológica que permite articular a distinção crucial entre a posse ontológica da onisciência pela pessoa de Jesus, em virtude de Sua natureza divina, e o exercício funcional ou a manifestação dessa onisciência através de Sua natureza humana.
A pessoa de Jesus possui a onisciência de forma inerente e inalterável. Contudo, em Sua encarnação, Ele voluntariamente escolheu não acessar ou velar certos aspectos desse conhecimento em Sua consciência humana, para que Sua humanidade fosse autêntica e Sua missão redentora pudesse ser cumprida de forma plena.
Esta compreensão fornece um arcabouço coerente para entender como Jesus pôde ser verdadeiramente humano, com limitações genuínas, enquanto permanecia verdadeiramente Deus, com todos os atributos divinos.
As limitações não são uma deficiência de Sua natureza divina, mas uma consequência de Sua auto-humilhação voluntária na Encarnação, um ato de amor e solidariedade com a humanidade.
Esta doutrina é fundamental para entender como Jesus podia demonstrar conhecimento sobrenatural (perceber pensamentos dos fariseus, conhecer o passado da mulher samaritana, saber da morte de Lázaro, prever a negação de Pedro) e, ao mesmo tempo, experimentar as limitações de um ser humano (crescer em sabedoria, não saber o dia da Sua volta, fazer perguntas genuínas).
A Communicatio Idiomatum explica que a pessoa de Jesus, sendo divina, possui onisciência. No entanto, ao assumir a humanidade, a expressão dessa onisciência através de Sua mente humana foi voluntariamente limitada, como parte de Sua kenosis.
Assim, a pessoa de Jesus, em Sua natureza divina, sabia tudo, mas em Sua natureza humana, operava dentro de certas restrições.
Perspectivas Teológicas sobre o Conhecimento de Jesus Encarnado
A complexidade do tema exige uma sumarização das diferentes posições teológicas. A tabela a seguir é ideal para organizar essas abordagens, seus argumentos e como elas lidam com os versículos desafiadores.
Isso não só ajuda a compreender o panorama das interpretações, mas também a identificar qual visão ressoa mais com a própria compreensão, ou a entender as nuances de diferentes posições.
Abordagem Teológica | Posição sobre Onisciência | Argumentos Principais | Como Concilia as Limitações Bíblicas (e.g., Mt 24:36, Lc 2:52) |
Visão Ortodoxa Clássica (Kenosis Moderada) | Ontologicamente plena, funcionalmente limitada na expressão humana. | Jesus é plenamente Deus (Colossenses 2:9) e, portanto, onisciente. Demonstrações de conhecimento sobrenatural (João 1:47-48, 4:18, 11:11-15; Mateus 9:4). A Kenosis (Filipenses 2:7) é um “esvaziamento de privilégios” ou “não-exercício voluntário” de atributos divinos em sua humanidade, não uma perda. | Lucas 2:52: Crescimento da consciência humana, não falta de conhecimento divino. Mateus 24:36: Jesus fala a partir de sua natureza humana ou em submissão ao Pai, velando o conhecimento para fins pedagógicos. |
Teologias Kenóticas Radicais (Século XIX) | Realmente limitada (auto-esvaziamento de atributos divinos ou consciência divina). | A autenticidade da humanidade de Jesus exige uma limitação real de atributos como onisciência. Tomam Lucas 2:52 e Mateus 24:36 literalmente como evidências de desconhecimento. | Propõem que o Logos se despojou ou limitou realmente atributos divinos ou sua consciência divina para se tornar plenamente humano. Visões geralmente consideradas problemáticas pela ortodoxia. |
Perspectiva da Unidade da Pessoa (com ênfase na Communicatio Idiomatum) | Onisciente como Pessoa (divina), mas com experiências cognitivas limitadas como Homem. | Jesus é uma única pessoa (União Hipostática) com duas naturezas. Atributos de ambas as naturezas são atribuídos à pessoa de Cristo. A onisciência pertence à pessoa divina. | As limitações (Lc 2:52, Mt 24:36) são experiências da natureza humana assumida pela pessoa do Logos. A pessoa de Jesus, em sua divindade, sabe, mas em sua humanidade, escolheu não manifestar ou acessar plenamente esse conhecimento. |
Teologias que Defendem a Onisciência Plena de Jesus Encarnado (Perspectiva da Divindade Inalterável)
Para esta perspectiva, a onisciência é um atributo essencial e inalienável de Deus. Se Jesus é Deus, Ele deve ser onisciente em todos os momentos de Sua existência, inclusive durante a encarnação, sem qualquer diminuição de Sua divindade.
Passagens que mostram Jesus com conhecimento sobrenatural são apresentadas como evidências irrefutáveis de Sua onisciência contínua.
Exemplos incluem: conhecer os pensamentos dos fariseus (Mateus 9:4, Lucas 6:8, 9:47) , revelar o passado da mulher samaritana (João 4:18) , saber da morte de Lázaro antes de ser informado (João 11:11-15) , e conhecer o caráter e a localização de Natanael (João 1:47-48). Ele também previu a negação de Pedro (Mateus 26:34).
A teoria da Kenosis, para essas visões, não implica uma renúncia real da onisciência, mas uma “ocultação”, “velamento” ou não-exercício de Seus privilégios divinos e glória, sem que a essência divina seja afetada. A glória de Jesus foi velada pela humanidade, mas não ausente.
Os argumentos que sustentam a onisciência plena de Jesus são firmemente ancorados na premissa teológica de que Deus é imutável e, portanto, não pode cessar de ser Deus ou de possuir Seus atributos essenciais.
Se Jesus perdesse a onisciência, mesmo que temporariamente, isso comprometeria Sua natureza divina e, por extensão, a eficácia de Sua obra redentora, pois somente um Deus pleno e perfeito poderia realizar a salvação.
Esta perspectiva enfatiza que qualquer aparente limitação no conhecimento de Jesus deve ser compreendida de uma forma que preserve Sua divindade plena e não diminuída.
A solução reside na distinção entre a posse do atributo e seu exercício ou manifestação, que foi voluntariamente restrito em Sua humanidade para o propósito da encarnação.
Lucas 2:52 (“crescia em sabedoria”) é interpretado como o desenvolvimento de Sua consciência humana em relação ao conhecimento que já possuía divinamente, ou um crescimento na expressão e aplicação dessa sabedoria em Seu contexto humano.
Não significa que Ele não sabia, mas que Sua mente humana estava se desenvolvendo. Mateus 24:36 (“nem o Filho sabe”) é visto como Jesus falando a partir de Sua natureza humana, ou como uma condescendência pedagógica para enfatizar a vigilância dos discípulos, sem revelar um conhecimento que não era para ser conhecido por eles.
Alguns teólogos antigos, como Atanásio, sugeriram que Ele apenas simulou desconhecer, ou que o conhecimento veio através do Pai, mas não por Si mesmo.
Teologias que Defendem uma Limitação Real do Conhecimento de Jesus Encarnado (Perspectiva da Autenticidade Humana)
Esta perspectiva argumenta que, para que a humanidade de Jesus fosse verdadeiramente autêntica, Ele deveria experimentar limitações genuínas, incluindo as cognitivas, assim como qualquer outro ser humano, exceto no pecado.
A plenitude de Sua identificação com a humanidade exige essa realidade. Passagens como Lucas 2:52 (crescimento em sabedoria) e Mateus 24:36 (desconhecimento do dia/hora) são tomadas literalmente como evidências de um conhecimento humano que não era ilimitado, mas que se desenvolveu e teve fronteiras.
Ações de Jesus como fazer perguntas para obter informações (e.g., Marcos 9:20-21: “Há quanto tempo isto lhe sucede?”) ou expressar surpresa diante da fé ou incredulidade (e.g., Lucas 7:9; Marcos 6:6) são vistas como evidências de que Ele não possuía todo o conhecimento de forma acessível à Sua consciência humana.
Os argumentos que advogam por uma limitação genuína no conhecimento humano de Jesus revelam a profundidade da solidariedade de Cristo com a humanidade.
Se Sua experiência humana, incluindo o desenvolvimento intelectual e as limitações cognitivas, não fosse autêntica, Sua capacidade de atuar como um Sumo Sacerdote compassivo que “se compadece das nossas fraquezas” seria diminuída.
Esta perspectiva enfatiza que a condescendência divina foi tão completa que Ele verdadeiramente imergiu na condição humana, com toda a Sua finitude, exceto pelo pecado.
Esta visão aprofunda a compreensão da empatia de Cristo e de Sua obediência perfeita alcançada dentro das limitações humanas. Isso torna Seu exemplo e sacrifício mais poderosos e relacionáveis para os crentes, pois Ele não apenas “conhece” a fraqueza humana, mas a experimentou de forma autêntica.
Para conciliar as duas naturezas e as aparentes limitações, algumas abordagens podem levar à ideia de duas “mentes” ou “consciências” distintas em Cristo – uma divina onisciente e uma humana limitada.
O principal desafio é como manter a unidade da pessoa de Cristo se houver duas consciências separadas e potencialmente independentes, o que poderia levar à heresia do Nestorianismo, que postula duas pessoas em Cristo. A ortodoxia calcedoniana insiste em uma única pessoa, o Logos, que subsiste em duas naturezas.
As teologias kenóticas modernas, como as de Thomasius, Frank, Gess, e algumas anglicanas, são as que mais se aproximam de uma “limitação real” no sentido de uma auto-restrição ou auto-degradação da consciência divina ou do uso de atributos.
Mesmo nessas, a ênfase é frequentemente na limitação do uso dos atributos divinos, não na sua perda ontológica. A ideia é que o Logos, ao encarnar, aceitou as limitações da natureza humana para se tornar solidário com ela, imergindo-se na condição humana com suas fragilidades e ignorâncias “inocentes”.
Síntese e Conclusão: O Mistério da Encarnação e a Onisciência de Cristo
A questão da onisciência de Jesus antes da ressurreição, conforme explorado, não possui uma resposta simplista de “sim” ou “não”. É um mistério que reside na intersecção e na união inseparável de Suas duas naturezas: a divina e a humana.
As Escrituras apresentam evidências que, à primeira vista, parecem contraditórias – passagens que indicam crescimento e limitação de conhecimento (Lucas 2:52, Mateus 24:36) e outras que demonstram conhecimento sobrenatural (João 1:47-48, 4:18, 11:11-15; Mateus 9:4).
No entanto, sob uma análise cristológica aprofundada, essas passagens revelam a complexidade, a riqueza e a coerência da pessoa de Cristo.
A síntese da análise revela que Jesus era onisciente como Deus, um atributo inerente à pessoa do Logos. Contudo, a expressão ou manifestação dessa onisciência foi limitada em Sua consciência humana devido à Kenosis.
Isso não constitui uma contradição em Seu ser, mas sim uma consequência de Seu modo de existência encarnado. O conhecimento estava sempre presente na pessoa divina, mas não era sempre acessado ou manifestado através da mente humana, permitindo uma genuína experiência humana.
Esta compreensão matizada permite a afirmação plena tanto de Sua natureza divina, com seus atributos, quanto de Sua natureza humana, com suas limitações, sem comprometer a integridade de nenhuma delas. Ela sublinha o profundo mistério e o propósito redentor da Encarnação.
A visão teológica mais amplamente aceita e que melhor concilia os dados bíblicos é que Jesus Cristo, como a Segunda Pessoa da Trindade (o Logos eterno), era e é ontologicamente onisciente.
Seus atributos divinos são inalienáveis e não foram perdidos ou diminuídos na Encarnação. No entanto, em Sua encarnação, Ele voluntariamente escolheu não exercer plenamente ou velar Sua onisciência através de Sua consciência humana, submetendo-se às limitações inerentes à natureza humana que assumiu.
Esta é a essência da Kenosis, entendida como um esvaziamento de privilégios e glória, não de divindade. Assim, Seu “crescimento em sabedoria” (Lucas 2:52) reflete o desenvolvimento genuíno de Sua mente humana, que aprendeu e amadureceu, e Sua declaração em Mateus 24:36 (“nem o Filho sabe”) é uma expressão dessa autolimitação voluntária em Sua humanidade, um ato de submissão ao Pai.
Ele demonstrou conhecimento divino quando e como era necessário para Sua missão e para revelar o Pai , mas não o utilizou para benefício próprio ou para anular a autenticidade de Sua experiência humana.
A discussão sobre o conhecimento de Jesus, especialmente Suas limitações, transcende um mero exercício acadêmico de lógica. Ela está profundamente entrelaçada com o propósito da Encarnação: a salvação da humanidade.
A Kenosis, incluindo a autolimitação do conhecimento, foi um ato deliberado de amor e obediência. Este caráter teleológico da Encarnação e da Kenosis demonstra que cada aspecto da vida de Cristo, incluindo Suas limitações cognitivas, serviu a um propósito maior no plano divino de redenção.
A autenticidade de Sua humanidade, com Suas limitações voluntariamente assumidas, torna-O um mediador perfeito e um exemplo a ser seguido. Ele pôde ser “tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado” (Hebreus 4:15) , pois experimentou as realidades da vida humana em Sua plenitude.
Sua capacidade de experimentar a vida humana plenamente, incluindo o aprendizado e o desconhecimento de certas coisas, aprofunda Sua solidariedade e empatia com a humanidade pecadora. Ele não é um Deus distante, mas um que verdadeiramente Se compadece.
A ressurreição marca o fim dessa autolimitação voluntária, com Jesus retornando à plena manifestação de Sua glória e onisciência em Sua humanidade glorificada , demonstrando a vitória sobre as limitações da carne e a plenitude de Sua divindade e humanidade unidas.
FAQ: A Onisciência de Jesus Antes da Ressurreição
- Jesus era onisciente antes da ressurreição? A teologia majoritária afirma que Jesus era ontologicamente onisciente como Deus, mas voluntariamente limitou a manifestação desse conhecimento em Sua humanidade. Outras visões argumentam por uma limitação real de Seu conhecimento humano.
- Como se explica o “crescia Jesus em sabedoria” (Lucas 2:52)? Para a visão ortodoxa, indica o desenvolvimento genuíno da consciência humana de Jesus. Para outras perspectivas, sugere que Ele não possuía todo o conhecimento desde o nascimento, evidenciando uma limitação real.
- O que a doutrina da Kenosis (Filipenses 2:7-11) diz sobre o conhecimento de Jesus? É interpretada como o “esvaziamento” de privilégios divinos ou o não-exercício pleno da onisciência em Sua humanidade. Algumas teologias kenóticas radicais propõem uma auto-limitação real de atributos divinos.
- Como interpretar a declaração de Jesus “nem o Filho sabe” (Mateus 24:36)? A visão majoritária entende que Jesus falava a partir de Sua natureza humana ou por escolha pedagógica. Contudo, para muitos, é uma prova explícita de uma limitação real em Seu conhecimento.
- Jesus demonstrou conhecimento sobrenatural em Sua vida terrena? Sim, as Escrituras registram momentos em que Jesus demonstrou conhecimento além da capacidade humana, como saber pensamentos ou detalhes do passado de pessoas, o que é usado como evidência de Sua onisciência.
- A onisciência de Jesus foi perdida na Encarnação? A teologia ortodoxa nega a perda ontológica da divindade ou de seus atributos essenciais. A onisciência não foi perdida, mas sua manifestação plena foi voluntariamente restrita em Sua consciência humana.
- O que é a União Hipostática e como ela se relaciona com o conhecimento de Jesus? É a doutrina que une as naturezas divina e humana em uma só pessoa de Cristo. Ela permite que a pessoa de Jesus seja onisciente (divina) e experimente limitações (humana) sem contradição em Sua pessoa.
- A Communicatio Idiomatum ajuda a entender o conhecimento de Jesus? Sim, essa doutrina permite atribuir à única pessoa de Jesus tanto os atributos divinos (como onisciência) quanto as experiências humanas (como limitações de conhecimento), sem que as naturezas se misturem.
- Quais são os argumentos para uma limitação real do conhecimento de Jesus? Argumenta-se que a autenticidade de Sua humanidade exige limitações genuínas, como o crescimento em sabedoria, o desconhecimento do dia e da hora, e a necessidade de fazer perguntas em certas situações.
- Qual o propósito teológico das aparentes limitações de Jesus? Elas são vistas como essenciais para a autenticidade de Sua humanidade e para Sua identificação plena com a condição humana, permitindo que Ele fosse um mediador e exemplo perfeito para a salvação.